Barbie tem muito a dizer, dispensa rótulos e é um dos filmes mais divertidos do ano
Produção como também aborda conflitos existenciais e discussões filosóficas sociais com leveza e humor; edição também tem "Grandes Clássicos".
💡 Olá
Não teve “Barbenheinmer” por aqui, ou seja, não conseguimos acompanhar os dois filmes em um único final de semana. Mas pudemos assistir Barbie, ao menos, e este é o grande destaque desta edição.
Aliás, há tempos não víamos um filme perfurar tanto o ideário coletivo: eram incontáveis o número de pessoas vestindo rosa perambulando pelo shopping ou indo em direção ao cinema no final de semana. Sucesso absoluto.
Ainda bem que esse sucesso se reflete também em um bom filme - o que Barbie definitivamente é.
Além de falarmos sobre essa grande estreia, é a última terça-feira do mês e isso significa Grandes Clássicos. A obra escolhida foi Terra Estrangeira (1995), produção nacional lançada em meio à recuperação do cinema brasileiro após o congelamento da Embrafilme, cadernetas de poupança e toda a crise provocada pelas decisões do (des)governo Collor.
Próxima edição comentamos sobre Oppenheimer - assim esperamos.
Boa leitura!
Cinema
Barbie tem muito a dizer, dispensa rótulos e é um dos filmes mais divertidos do ano
Nunca me pareceu que um filme sobre Barbie pudesse dar certo. Ainda bem que eu estava completamente enganado. Barbie não só é um ótimo filme, como também aborda conflitos existenciais e discussões filosóficas sociais com leveza para assegurar que esses conceitos sejam transmitidos com clareza à sua audiência e disseminado por ela.
Isso graças ao talento e inventividade da diretora Greta Gerwig, que escreveu o roteiro de Barbie com seu parceiro Noah Baumbach (Histórias de Casamento).
Em Barbie, Greta reafirma sua capacidade de contar boas histórias ao misturar fantasia e realidade, além de jogar muito bem com suas contradições, do mundo perfeito da Barbieland em contraponto a realidade da sociedade patriarcal, e controvérsias que a Mattel se envolveu nos últimos anos.
[CUIDADO: CONTÉM SPOILERS]
A metáfora é eficiente: o que se passa na Barbieland, ao acompanharmos a Barbie Estereotipada (Margot Robbie), nada mais é do que o imaginário de uma menina que usa da criatividade para desenvolver um mundo diferente e só dela, no qual as suas bonecas brincam e são o que quiserem. Isso quando não tem nenhum Ken (Ryan Gosling) querendo chamar mais atenção.
Quando o que acontece nesse imaginário começa a questionar e refletir o seu lugar no mundo, o qual remete à abertura do filme na referência a 2001: Uma Odisséia no Espaço com bonecas sendo quebradas pelas novas gerações, Barbie passa a não acreditar nesse mundo ideal, perfeito e cor-de-rosa.
Inteligentemente, Greta conecta esses sentimentos com a ideia de que Barbie precisa ir até o mundo real, encontrar a menina que está tendo esses pensamentos e restabelecer o equilíbrio entre os dois mundos. E Ken a acompanha nessa jornada.
Logo, os impactos dessa realidade exercem uma forte pressão, tanto em Barbie quanto em Ken. Enquanto ela está em busca de resposta e significado, Ken se depara com um mundo dominado por homens e isso o deslumbra.
Em paralelo, a fábula trilha de Barbie é ainda mais provocativa, pois ela vê quem está provocando essas memórias e se surpreende: não é uma criança, mas sim Gloria (America Ferrara), mulher nos seus trinta e poucos anos e que está em busca de estabelecer algum tipo de conexão com a sua filha.
Dessa forma, a relação entre mãe-filha ganha um novo capítulo na filmografia de Greta, a qual já havia analisado esse tema no ótimo Lady Bird - seu primeiro longa-metragem.
Tudo isso enriquece a fantasia criada pela diretora e as referências que ela joga na tela: seja na abertura que remete a 2001: Uma Odisséia no Espaço, nas sequências ambientadas na sede da Mattel que emulam Dr. Fantástico, também de Stanley Kubrick, e até quando subverte o próprio gênero ao incluir números musicais que recordam a era de ouro de Hollywood - dominada por homens brancos cujas produções nunca exibiam os conflitos sob o ponto de vista das mulheres.
A partir dessas referências tão bem utilizadas, Greta Gerwig destila cutucadas (Zack Snyder que o diga), piadinhas (cinéfilo explicando O Poderoso Chefão) e desconstruções dos padrões de beleza. Por isso uma das cenas mais emblemáticas no filme é quando o presidente da Mattel pede a Barbie para ela entrar na caixa. E a “boneca” reluta.
Tanto o filme quanto a personagem não querem rótulos, ou serem perfeitamente embalados em uma caixinha e colocados em prateleiras que as categorizem. Barbie é um filme que tem muito a dizer, bem elaborado e genuinamente divertido. Do início ao fim.
Grandes Clássicos
Terra Estrangeira é retrato melancólico de Brasil e personagens à deriva
Falar de Terra Estrangeira, filme dirigido por Walter Salles e Daniela Thomas lançado em 1995 e disponível no Globoplay, é lembrar da sequência que ilustra com precisão o contexto brasileiro da década de 1990 e também a própria situação dos seus personagens - e, por que não, do cinema brasileiro.
Quando Alex (Fernanda Torres, em uma grande atuação) conversa com Paco (Fernando Alves Pinto) o quanto gostaria de voltar para casa, Paco pergunta “onde que é tua casa”. Alex diz não saber. “Só não é aqui˜, ela responde antes de emendar nomes de bairros famosos de São Paulo e Rio de Janeiro.
Percebe-se em toda a cena, ainda que os personagens estejam desfrutando de um momento a sós durante uma viagem, uma certa tristeza no diálogo, aquela saudade de estar em um lugar no qual se pertence e se consegue chamar de “casa".
Alex e Paco não sentem isso. Sequer o Brasil dos anos 90, mergulhado na crise econômica do governo Collor que tinha acabado de congelar as cadernetas de poupança. Pior ainda para o cinema nacional o qual, com a quebra da Embrafilme, ficou tão congelado quanto o dinheiro dos brasileiros.
Paco e Alex, no entanto, se conhecem por mero acaso. Ela, já vivendo em Portugal, sobrevive trabalhando em um restaurante e tem um relacionamento difícil com o músico Miguel (Alexandre Borges); enquanto que Paco mora no Brasil, mas se vê sem perspectivas após a morte da mãe (Laura Cardoso, brilhante como sempre) e sem dinheiro, pois perdeu tudo com a decisão de Collor. A saída é aceitar um bico: levar uma encomenda contrabandeada para Lisboa.
É nesse contexto que Terra Estrangeira nos insere, ao capturar personagens e o próprio Brasil sem qualquer identidade - ou em busca de uma para chamar de si, além da língua que os identificam.
Terra Estrangeira, mesmo antes de ambientar completamente a narrativa, transmite a ideia de ser um filme trágico, triste e melancólico pelo preto e branco que preenche uma tela que parece desprovida de vida e alegria.
Daniella Thomas e Walter Salles acertam nisso e também na abordagem crua de como filmam, ainda que eles tentem pincelar essa crueza com algumas tomadas bonitas - destaque para o plano aberto que mostra Paco e Alex sombreados por uma cruz caída em um cenário desértico, quase apocalíptico nos arredores de Lisboa.
O filme se perde um pouco quando adiciona aspectos de thriller na narrativa, inserindo seus personagens em um jogo perigoso que envolve máfia e quadrilha de contrabandistas. O romance também entre Paco e Alex surti pouco efeito, deixando o terceiro ato da narrativa menos interessante.
Contudo, é necessário reconhecer como Terra Estrangeira costura bem o argumento dos personagens sendo explorados e oprimidos, seja por estarem no país que colonizou o lugar de onde vieram, ou mesmo por serem chantageados por outro brasileiro, Igor (Luís Melo), o qual não percebe (ou pelo menos não se importa) que ele próprio está sendo oprimido e usado por outros “colonizadores”.
É um diálogo constante de personagens perdidos e jogados no mundo com uma ideia utópica de que sair do Brasil e tentar uma vida fora do país é a melhor solução, para contornar as crises que pontuam a trajetória da sociedade brasileira. Terra Estrangeira é um filme lançado nos anos 90 e cruelmente atual.
Próximo Filme: As duas Faces da Felicidade, de Agnés Varda.
📦 Recomendações da Semana
Ainda falando de Barbie, esse artigo da BBC fala da bem-sucedida campanha de marketing do filme. A produção, aliás, alcançou a 2ª maior estreia no Brasil.
Vai ser um segundo semestre difícil para os festivais de cinema, em razão dos Sindicatos dos Atores e Roteiristas terem paralisado todas as atividades na disputa por melhorias com os grandes estúdios e gigantes do streaming. Mesmo assim, o Toronto International Film Festival, que acontece entre 7 e 17 de setembro, divulgou o seu line-up. Na lista, filmes de diretores como Taika Waititi, Richard Linklater e Alexander Payne, além de atores que estão assumindo a cadeira de direção como Anna Kendrick, Michael Keaton, Chris Pine, Viggo Mortensen e Ethan Hawke.
E saiu também o line-up do Festival de Veneza. Na Mostra Competitiva, nomes fortes como David Fincher, Ava DuVernay, Ryûsuke Hamaguchi, Yorgos Lanthimos e Sofia Coppola - além de Michael Mann, como é bom vê-lo novamente dirigindo algum filme. A lista dos filmes na mostra Fora de Competição também merece destaque, com novas produções assinadas por J.A Bayona, Woody Allen, William Friedkin, Richard Linklater e Roman Polanski. Para a abertura, Challengers, dirigido por Luca Guadagnino (Me Chame pelo seu Nome) e estrelado por Zendaya, foi substituído pelo italiano Comandante, de Edoardo De Angelis. O festival será realizado de 30 de agosto a 9 de setembro.
Se você chegou até aqui, muito obrigado pela leitura! Até semana que vem!