Assassinos da Lua das Flores é um filme devastador como Scorsese nunca havia feito
A narrativa exigiu que Scorsese fosse um pouco mais fundo. E, novamente, sem medo do que poderia encontrar nessa jornada, ele entrega mais uma obra-prima.
💡 Olá
Essa é uma edição extra da newsletter Sob a Minha Lente, focada exclusivamente no épico Assassinos da Lua das Flores, novo filme dirigido por Martin Scorsese e que chegou aos cinemas na última quinta-feira (19).
Não tinha como ser diferente: ter um filme de Scorsese lançado no ano é sempre um evento e agradeço por, desde Gangues de Nova York, ter assistido todos seus filmes em uma grande tela.
Assassinos da Lua das Flores é feito para essa experiência de assistir numa sala de cinema. O filme vai chegar na plataforma da Apple TV+ em breve, é verdade, mas não perca essa chance de assistir um filme de Scorsese no melhor cinema que você puder.
Boa leitura!
Cinema
Assassinos da Lua das Flores é um filme devastador como Scorsese nunca havia feito
Em cinquenta anos de carreira e com mais de vinte filmes no currículo, Assassinos da Lua das Flores é um tipo de filme que o diretor Martin Scorsese nunca havia feito. Os temas vistos em sua rica fimografia estão neste recente trabalho, como a ambição do homem branco pelo poder, corrupção, violência e o centro moral que ele sempre busca encontrar. Realidades que ele presenciou e tenta confrontar.
Assassinos da Lua das Flores, porém, exigiu que Scorsese fosse um pouco mais fundo. E, novamente, sem medo do que poderia encontrar nessa jornada, ele entrega mais uma obra-prima.
A trama de Assassinos da Lua das Flores, baseado no livro homônimo de David Grann, é centrada na Nação Osage - o mais rico povo per capita do planeta Terra no final dos anos 1900. Toda essa riqueza veio do petróleo que os Osage encontraram nas suas terras, após serem expulsos de outros lugares e terem recebido esse pedaço de terra que todo mundo acreditava ser improdutiva.
Não demora para que toda essa riqueza atraia a atenção dos homem branco. A estrutura social, a partir do envolvimento deles, é desenvolvida para desviar dos bolsos dos Osage a riqueza que a eles pertencia. É uma ganância que não tem limites. Numa escalada aterrorizante, índios da Nação Osage começam a morrer misteriosamente, enquanto que o homem branco articula para eles se casarem com as indígenas e terem direito legal às terras assim que elas morrerem.
É nesse contexto que somos apresentados a Ernest Burkhart (Leonardo DiCaprio, em sua melhor atuação em um filme de Scorsese, o sexto que fazem juntos), um veterano de guerra que chega à Fairfax (o centro da exploração de petróleo) para também ganhar a vida. Seu tio, William Hale (Robert De Niro), consegue um trabalho como motorista mas tem planos maiores para o sobinho. E assim Ernest conhece Mollie (Lily Gladstone, a futura vencedora do Oscar de Melhor Atriz), uma mulher Osage fadada a ter o mesmo destino que ela testemunha recorrentemente na reserva: a morte.
Mollie e Ernest se amam, aparentemente. O que é trágico para ambos, pois o amor encontra a barreira da ambição de Ernest pelo dinheiro e poder. Ele tem total consciência do que está fazendo. Pode ser ignorante enquanto é manipulado pelo tio, mas é somente mais um que quer se aproveitar das terras dos Osage.
Enquanto isso, Scorsese mostra qual o seu objetivo com o filme: lançar luz sob esses crimes horríveis e nos indicar que todos somos culpados pelo o que aconteceu. O silêncio da sociedade, ao ver as mortes acontecendo e sendo complacente, faz com que todos se tornem cúmplices no fim das contas.
A sujeira com que tudo acontece, com médicos prescrevendo remédios que vão envenando os membros da Nação Osage, os esquemas de corrupção que atingem todos os níveis das instituições que começam a se estabelecer por conta da atividade petroleira, fazem surgir ali sintomas de atividades que se assemelham à máfia, um mundo (ou seria melhor dizer submundo?) que Martin Scorsese desenvolveu tão profundamente em filmes como Caminhos Perigosos, Os Bons Companheiros e O Irlandês.
Asssassinos da Lua das Flores flui de maneira espetacular em suas três horas e meia, com Scorsese extremamente cuidadoso com a forma de filmar os Osage respeitando suas tradições e cultura, enquanto que o homem branco é às vezes filmado nas sombras, onde os acordos sujos e planos maquiavélicos são feitos, ou como manifestações do diabo em forma de gente na sequência de um incêndio em que a câmera de Scorsese filma a ação quase como um quadro pintado a óleo.
Mas também não é um filme fácil. Mesmo quando o drama de tribunal, sempre tedioso em qualquer filme, domina o terceiro ato da narrativa e surge como uma preparação do que parece ser o fim, o diretor entrega trinta minutos finais que somente uma mente brilhante como a de Scorsese é capaz de oferecer.
É nessa sequência final que Scorsese revela o centro moral de Assassinos da Lua das Flores: Mollie. Apesar de todas as tragédias sofridas e tendo que atravessar um verdadeiro inferno para sobreviver, Mollie oferece uma chance de redenção à Ernest, que prefere continuar mentindo
Ali, abandonado por Mollie ao não conseguir assumir a verdade, Ernest lembra Travis Brickle (personagem central de Taxi Driver) no telefone público ligando para Betsy. Em um determinado momento, a câmera, tão envergonhada pela situação do seu protagonista, esquece Travis e aponta para o corredor vazio enquanto Travis continua falando (sozinho).
Em Assassinos da Lua das Flores, porém, Scorsese aponta para Ernest sem esquecê-lo, porque não se trata de vergonha mas sim de abominar os crimes que ele ajudou a cometer e envergonhá-lo.
Desculpa repetir, mas é mais uma obra-prima desse grande mestre do cinema.
Se você chegou até aqui, muito obrigado pela leitura! Até semana que vem!