Anatomia de uma Queda constrói thriller angustiante envolto por mistério até o fim
Também destacamos a série O Faz Nada, disponível na Star+, e mais uma discussão sobre para onde a produção de séries está indo nessa efervescência de streamings.
💡 Olá
Tem filme vencedor da Palma de Ouro em Cannes desse ano como destaque na edição dessa semana. Anatomia de uma Queda foi exibido na Mostra SP e já é possível assistir por aí. Ótimo filme, direção segura de Triet, mas a atuação de Sandra Huller é um absurdo. Ouso dizer que ela está ainda melhor do que em Toni Erdmann, outro grande filme (este alemão) lançado em 2017.
Além de Anatomia de uma Queda, também destacamos a boa comédia argentina O Faz Nada. Assistimos em uma sentada durante o feriado. São poucos episódios, bem curtos, texto afiado… Ou seja: ótima para maratonar.
Boa leitura!
Cinema
Anatomia de uma Queda constrói thriller angustiante envolto por mistério até o fim
No filme A Origem, Cobb volta à realidade ou está sonhando? Capitu traiu Bentinho em Dom Casmurro? Teddy é paciente ou detetive em Ilha do Medo?
São perguntas vindas de histórias ambíguas que sempre atraem a nossa atenção pela natureza por si só da ambiguidade. Anatomia de uma Queda segue esta dinâmica, com algumas camadas que tornam a trama misteriosa até o fim.
Vencedor da Palma de Ouro em Cannes nesse ano e dirigido por Justine Triet (que também assina o roteiro com Arthur Harari), Anatomia de uma Queda apresenta nos primeiros trinta minutos a morte misteriosa de Samuel (Samuel Theis), professor e aspirante a escritor. A principal suspeita é a sua esposa, Sandra (Sandra Huller, em atuação tão marcante quanto no ótimo Toni Erdmann), uma romancista já com um nome consagrado no mercado editorial.
O filme provoca a questão: será que Sandra é a responsável pela morte do marido? A partir daí, o filme nos leva por uma estrada escura a qual pouco enxergamos o que está à frente e seguimos apenas nosso instinto em meio às curvas para chegar em segurança ao nosso destino.
É uma metáfora, mas também é uma cena que aparece no filme e que funciona muito bem para explicar o quanto Trie deliberadamente nos coloca no escuro - assim como a sua protagonista.
Anatomia de uma Queda, porém, não fica apenas no mistério sobre a culpa ou não de Sandra. Enquanto a primeira metade do filme é sobre ela convencendo o seu advogado (e nós mesmos), Vincent Renzi (Swann Arlaud), de que é inocente enquanta narra os últimos momentos que antecederam a morte do marido, o filme é mais ainda sobre o relacionamento conjugal.
Durante um testemunho, Sandra diz que “um casal é uma espécie de caos, às vezes lutamos juntos e outras separados”. E é isso que assistimos a partir do momento que Anatomia de uma Queda muda o foco da narrativa e se torna um drama penal - e bem construído como há muito tempo eu não via - ao acompanhar o julgamento de Sandra e detalhar a investigação.
Isso nos lembra que esse não é um filme de uma história típica de um livro de Agatha Christie, no qual algum detetive aparece em cena para solucionar o crime.
Há indícios da culpa de Sandra? Sim, principalmente na forma como Triet por vezes esconde a personagem envolto em uma luz escura que às vezes a torna alguém ameaçadora; mas há também indícios da sua inocência e que se trata, ao final, de um suicídio.
É claro que essa ambiguidade é o que Justine Triet deseja plantar na nossa cabeça. Tendo certeza ou não, Sandra não parece satisfeita (ou segura) mesmo após o veredicto. É como se ela não encontrasse a paz e alívio que ela buscasse logo quando o julgamento termina.
Baseando-se apenas em suposições, Anatomia de uma Queda impressiona por ter a narrativa sustentada em um debate que termina por expor a intimidade, fragilidade e conflitos de um casal (formado por pessoas conhecidas do público) aos escrutínios da mídia e sua cobertura sensacionalista (até lembrou o julgamento do caso Johnny Depp v Amber Heard).
Em meio a isso tudo, Triet se diverte e brinca com o mistério. A sua câmera, no entanto, não tenta nos manipular. Mesmo porque, a trama central não é sobre resolver o crime. O filme resolve isso.
O ponto central de Anatomia de uma Queda está nas consequências trágicas e traumáticas por tudo que envolve os conflitos de um relacionamento, entre elas a falta de diálogo.
Séries
O Faz Nada cultua a culinária argentina enquanto critica a sofisticação gastronômica
É (quase) sempre cômico quando um crítico é retratado em alguma produção porque, na maioria das vezes, as excentricidades o tornam um ponto de partida de alguém que queremos acompanhar só para ver até onde vai a sua excentricidade.
Essa é uma das premissas de O Faz Nada, nova série disponível no Star+ e que vem da Argentina. Nela, Manuel (Luís Brandoni) é um experiente e renomado crítico gastronômico, respeitado e temido tanto quanto Anton Ego na animação Ratatouille (2007).
Manuel vive um eterno bloqueio criativo que já dura 20 anos e é muito bem cuidado por Celsa (Maria Rosa Fugazot), sua funcionária que realiza tudo perfeitamente do jeito que ele gosta.
A vida de Manuel, que nunca fez nada na vida de lavar uma roupa a cozinhar a própria comida, vê a vida desmoronar com a morte repentina de Celsa. Mas tudo muda com a chegada de Antonia (Majo Cabrera), imigrante paraguaia indicada por uma antiga namorada e amiga, Grace (Silvia Kutika)
Há um fator interessante na narrativa de O Faz Nada que reside na presença de Robert De Niro, interpretando um crítico e escritor de Nova York cuja narração oferece praticamente um perfil jornalístico de como é a personalidade de Manuel.
Isso faz uma boa diferença na diversão da série porque O Faz Nada não apresenta nada de novo em termos de conflitos e, principalmente, de como encontramos o personagem e a curva de eventos que o transformam.
Na verdade, é até óbvio considerando que o mesmo desfecho é visto magistralmente em Ratatouille. Em O Faz Nada, a presença de Antonia faz Manuel enxergar o mundo de uma maneira mais simples, sem a sofisticação que vemos no início. Mas é muito forçado o crédito que a série dá a ela sem ter conseguido desenvolver bem essa trama.
Porém, na maior parte do tempo O Faz Nada arranca algumas risadas e entretém bastando não levá-la muito a sério - as excentricidades justificáveis de Manuel são tratadas com bom humor e as melhores sequências é quando ele aparece se comportando com desdém e arrogância porque, de fato, é engraçado.
Talvez mais do que tudo isso, Nada é uma minissérie que cultua Buenos Aires e a gastronomia argentina, apresentando a beleza de suas ruas, restaurantes e parques ao invés de degradar a cidade com cenas da crise econômica. É um escape da realidade e funciona bem.
Séries
A era da redundância na televisão ou onde vamos parar com tantos streamings
Esses dias fui surpreendido pela notícia de que Prison Break (2005), uma das melhores séries lançadas nos anos 2000, estaria novamente sendo preparada para um revival com selo da Disney (na verdade, é o Hulu) e pelo mesmo criador de Mayans M.C. (um derivado de Sons of Anarchy) O comunicado diz, no entanto, que o elenco será renovado. Os mesmos produtores da série original estarão envolvidos. Mas a pergunta fica: por que?
Uma pesquisa rápida mostra que esse tem sido um movimento comum. Apesar de tantos serviços de streaming, com muitas séries sendo desenvolvidas e lançadas que mal temos tempo de digerir tudo que sai, o fato é que poucas conseguem se estabelecer e se conectar com a audiência.
Particularmente, sinto essa dificuldade: hoje, ao entrar nos mais diversos serviços de streaming à procura de alguma coisa para assistir, a busca é árdua. Quase sempre desisto. No momento, estou revendo Mad Men, por exemplo. Não por nostalgia, mas porque realmente é muita produção e quase nenhuma qualidade. E, especificamente com Mad Men, me sinto mais preparado agora para refletir sobre alguns debates que a série expõe.
É claro que existem séries atuais que capturam o espírito e essência disso que estou divagando, como The Bear, Reservation Dogs, The Last of Us, Chernobyl e mesmo Cangaço Novo, uma produção brasileira que não deve em nada para o que é feito lá fora. Esse é um ponto positivo do streaming, aliás, já que a produção nacional ganhou mais espaço.
Mas sem desviar tanto do assunto, fiz um levantamento rápido de algumas séries que foram “ressuscitadas” na tentativa de capturar a mesma audiência que uma vez a elevaram ao sucesso em tempos passados.
Entre elas dá para citar Dallas, Full House/Fuller House, Roseanne/The Conners, Mad About You e Sex and the City/And Just Like That. E sabe quantas delas continuam em exibição? Apenas o revival de Sex and the City.
A crítica e jornalista de entretenimento da revista TIME, Judy Berman, definiu bem essa fase da televisão marcada pelos serviços de streaming em um termo que resume bem a discussão: após a Era de Ouro (ou Peak TV, como ficou conhecida), hoje vivemos a Era Redundante da TV.
Entramos no mundo exaustivo das franquias, das histórias licenciadas (como Star Wars e The Witcher), dos derivados ou dos revivals enquanto somos inundados por tantas produções de qualidade questionáveis.
Há um limite, porém, e talvez o impacto do streaming esteja em um ponto de virada como bem explicou esse artigo da Vulture.
A divisa está no nosso bolso, já que a renda disponível para assinar tantos serviços cobra o seu preço. E esse investimento não está tendo retorno.
📦 Recomendações da Semana
Os Beatles lançaram o minidocumentário "Now and Then", sua nova música de mesmo nome (ouça aqui) finalizada mais de quatro décadas depois do início de sua gravação. A canção é chamada pela produção da banda de "a última música dos Beatles". Escrita e cantada por John Lennon, a versão final foi desenvolvida e trabalhada por Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr. Paul e Ringo foram os responsáveis pela finalização da música.
O documentário brasileiro Mari bi: A Árvore do Sonho, dirigido pelo indígena Morzaniel Iramari, está na short list da categoria de Documentário de Curta-Metragem divulgada pelo International Documentary Association (IDA), que serve como porta de entrada para o Oscar. Assim, pela primeira vez, o Brasil pode ter um filme dirigido por um indígena na maior premiação do cinema. A produção estreou no festival Sheffield Doc Fest e vem conquistando diversos prêmios (como de Melhor Fotografia no Festival de Gramado desse ano). Mãri hi convida a uma imersão na poética e nos ensinamentos dos povos da floresta pelas palavras do grande xamã Yanomami, Davi Kopenawa. O filme foi realizado na casa coletiva de Watorikɨ, na região do Demini, na Terra Indígena Yanomami (TIY), situada entre os Estados de Roraima e Amazonas.
Se você chegou até aqui, muito obrigado pela leitura! Até semana que vem!